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domingo, 4 de maio de 2014

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 04/05/14

Os efeitos colaterais de viver

Basta nascer e o resto é sopa.

Será? Nos primeiros anos, estar vivo parece resumir-se ao ato de inspirar e expirar, mas justamente na infância é que são criados os traumas que formatarão nosso caráter. Seu pai lhe transmitiu alguns preconceitos quando você era um frangote, sua mãe era uma figura dúbia, seu avô lhe cobrou demais, sua avó fazia umas tortas azedas, seu cachorro fugiu quatro vezes, seus amigos debochavam das suas espinhas, você era o goleiro do time, e ainda por cima frangueiro. Como esquecer? Bem-vindo aos “Efeitos Colaterais de Viver”. Se virar minissérie, quero meus royalties.

Viver é ter uma relação mais ou menos bem resolvida com seus pais. Sem culpa, pois eles também tiveram uma relação mais ou menos com os pais deles, e esses com os seus bisavós: é da natureza humana ter conflitos com quem nos gerou. Amor e ódio, aceitação e repulsa, concordâncias e discordâncias, é assim mesmo. Quando ficarmos velhinhos, amaremos a todos incondicionalmente. É das poucas coisas para a qual serve a longevidade: a gente esquece as dores e perdoa tudo - dizem.

Viver é sofrer por amor. Se você nunca sofreu, volte para o útero e comece tudo de novo, desta vez torcendo para que seja um feto normal, ou seja, que irá sofrer por amor um dia. Você achou que amaria para sempre quantas vezes? Eu sei, é uma decepção quando o “para sempre” termina. Você vai sofrer quando tiver que romper com alguém, sofrer quando alguém romper com você, sofrer quando estiver casado e desejar aventuras, sofrer quando não estiver casado e desejar estabilidade emocional, sofrer quando for rejeitado, sofrer quando magoar quem não merece, sofrer quando duvidar de suas escolhas. Amar tem mil e uma contraindicações, mas resigne-se, ninguém consegue abrir mão de passar por esses deliciosos infortúnios.

Você ficará sem dinheiro em alguma época da vida. Você será rejeitado. Você pagará mico tentando convencer os outros de que é alguém especial. Você será despedido um dia. Você será competente, mas sempre haverá alguém mais competente que você. Você será ótimo, mas nunca será insubstituível.

Você terá insônia. Você terá que engolir alguns desaforos em nome da civilidade. E se não engolir e partir para a agressão, criará fama de perturbado. Você vai beber demais. Ou fumar demais. Ou não cultivará nenhum vício. O que quer que faça, não faltará quem lhe condene.

Viver é ouvir que você está muito gordo, ou muito magro, ou ter salientada qualquer outra imperfeição: ninguém dirá que você está no ponto. Viver é não conseguir acompanhar tudo o que está acontecendo no mundo, porque acontecem coisas demais. É ser alérgico a grosseria, rudeza, burrice, e não conseguir se imunizar. Viver será saudável uns 80%, se você tiver sorte.


Viver é estar a par dos efeitos colaterais. Como? Lendo a bula. Livros são bulas. Quem não lê, não reconhece os sintomas da nossa humanidade.



Jornal Zero Hora - 04 maio 2014
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