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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora - 07/12/16

Elle


Há uma cena no filme O fabuloso destino de Amélie Poulain, de 2001, em que a personagem de Audrey Tautou observa vários prédios da cidade e se pergunta quantas pessoas estariam, naquele instante, tendo um orgasmo. Não é incomum termos esse mesmo pensamento quando deparamos com centenas de janelas à nossa frente, denunciando a existência de um sem-número de apartamentos, cenários de toda espécie de intimidade e segredos.

Moro de frente para um mar de edifícios e permito que minhas indagações sejam ainda mais indiscretas: quais serão as verdades inconfessas que vivem em cativeiro, que nunca atravessam a porta da frente, que ficam escondidas por trás das cortinas? Elas não saem para piqueniques no parque, não cumprem expediente no escritório, não aparecem nas conversas com os amigos – socialmente, entregamos apenas uma versão condizente com o status quo e de fácil digestão para a plateia. 

É dentro de casa que a gente urra, chora, transa, transcende e morre uma, duas, três vezes ao dia. É entre quatro paredes que deixamos escoar pela pia e o chuveiro os nossos pequenos fracassos, é no ambiente privado de cada um que os problemas ganham permissão para ir do quarto ao banheiro, do banheiro à sala, de pés descalços. É a portas fechadas que nossa verdade mais absoluta anda despida.

Não encaro isso como uma visão derrotista do ser humano – óbvio que é em casa também que dançamos em frente ao espelho, que recebemos os amigos mais indispensáveis, que celebramos o sucesso de ter uma vida boa. Estou falando do que há de secreto por trás de tudo – dor e prazer.

Toda essa elucubração foi despertada por outra produção francesa, Elle, atualmente em cartaz com a estupenda Isabelle Huppert vivendo um papel de empoderada que pode vir a irritar algumas feministas – e se uma mulher quiser tirar proveito de um estupro para liberar-se de traumas ainda piores, como fica? Não é um filme para amadores. 

A perversidade tem papel de destaque, ora apoiada no humor negro, ora justificada como fetiche, ora simplesmente gratuita – faz parte do jogo. Aliás, a personagem principal é uma executiva que administra uma empresa criadora de games violentos. Sabe que o brutal sempre vem acompanhado de extrema excitação.

Nenhuma apologia ao crime. Apenas um filme para adultos capazes de compreender que ao retirarmos as camadas que revestem nossa pretensa normalidade, aparece o que o skyline das cidades esconde: histórias particulares repletas de carências, fantasias e rendição a desejos muitas vezes embaraçosos, mas que a vergonha nunca impediu que se realizassem. Por trás das janelas ao longe, as pessoas não estão apenas transando, mas compensando-se.



Jornal Zero Hora - 07 dezembro 2016
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